‘Papalagui’ é (ou era) o termo utilizado por uma tribo de indios dos mares do Sul para identificar o ‘homem branco’, supostamente civilizado. Foi popularizado num livro eterno, com o mesmo nome, onde são relatadas as considerações de um chefe tribal, feitas há séculos atrás, sobre a forma de estar na vida do homem branco em oposição á filosofia de vida que esse chefe conhecia e praticava, juntamente com a sua tribo, em plena comunhão com a natureza. A descrição inocente e pura, mas nua e crua, efectuada por este indígena, e que resulta do seu primeiro contacto com os povos ditos ‘civilizados’, acaba por expôr dolorosa e irónicamente a fragilidade e as contradições dos alicerces da civilização ocidental, ridicularizando-a, ridicularizando-nos, a todos, a nós que nela vivemos (ou ... sobrevivemos?).
Sem qualquer conotação negativa, várias vezes substituo a imagem desse chefe indio, pela do Fernando Girão. Ele é, claramente, o chefe da tribo Tuiavii dos nossos tempos, a começar pelos seus traços fisicos que não escondem os seus genes, e terminando na clara desilusão e crescente inadaptação á sociedade em que vivemos, escravizada pelo dinheiro, pelo relógio e pelo Poder, a qual transparece de muitas das suas palavras, sejam letras de canções, prosas poéticas ou poemas. Ele é evidentemente um bom homem, nobre de sentimentos, puro de convicções, apaixonado pelo que de mais belo tem a vida, que canta o amor como se não houvesse mundo, mas que fala do mundo como se não houvesse amor. Um homem que se viu crescer e amadurecer numa sociedade que não compreende, e com a qual e pela qual sofre, cujas incongruências expõe de forma simultaneamente ingénua e acutilante, tal como o famoso chefe do livro 'Papalagui'.
Girão é um talentoso musico, universal, plural, visceralmente multicultural na sua arte, talvez fruto de já o ser no seu próprio sangue. É também uma voz e uma presença impressionantes, que não deixam ninguem indiferente, da mesma forma que tambem não se fica indiferente á sua arte. Regra geral, ou se ama, ou se detesta o que ele sabe fazer na musica e com a musica. Mas ... indiferente, não. E mesmo quem gosta, acha dificil dizer que sim, sem ter necessidade de ser selectivo na sua opinião, porque é tal a miscelanea étnica de géneros e de estilos musicais que tem pautado o seu trabalho criativo, que fica dificil dizer que se gosta de tudo o que ele tem feito ao longo da sua carreira de cerca de 30 anos. Pode é dizer-se que, fruto do seu caminho paralelo (mas quase nunca coincidente) ao do mundo que conhecemos e em que vivemos nas ultimas décadas, Girão acaba por ser quase um desconhecido para a generalidade da população, e muito incompreendido por alguns que julgam que o conhecem, a si, ao seu talento, e ao seu peculiar modo de estar na vida. Esse desconhecimento e/ou incompreensão, associados a uma evidente falta de preparação dos ouvidos do publico nacional para a genialidade miscigenadora de Girão, levaram a que, ao longo dos anos, ele seja triste e ignorantemente parodiado pelos seus ‘ué-lé-lés’, como se tudo que ele fez se resuma apenas a aquilo que ouvidos menos atentos ou preparados entendem como vocalizações tribais. Ao longo da sua carreira, ele tem escrito canções para, e colaborado com os mais variados artistas, nacionais e internacionais, dando assim uma visibilidade adicional ao seu talento criativo, e fazendo dele um musico do mundo, muito provávelmente mais compreendido, considerado e acarinhado além-fronteiras do que por cá, neste triste e cinzento recanto mais e mais aculturado.
Foi com muito agrado que descobri recentemente este recém-criado fórum dedicado ao Fernando Girão e aos seus fãs. Está pejado de prosa e poemas, escritos e musicados, que demonstram claramente o que décadas de crescente divórcio da nossa realidade social, e de afastamento do actual modelo do ‘Ser lusitano’ provocaram no Girão. Sinto que a amargura no seu discurso se acentuou, e que parece estar a alastrar para a sua musica, e isso entristece-me, pois identifico-me com o Girão que faz rodopiar na sua musica a alegria dos ritmos do mundo, aquele que deixa transbordar da voz uma ternura arrebatadora em cada canção de amor, aquele que é uma força da natureza em cada nota musical. Quero acreditar que é possivel ter esse Girão de volta, por mim enquanto fã, por nós enquanto povo, que tão mais pobres ficamos cada vez que deixamos cair mais uma árvore da nossa já tão diminuida floresta cultural. Precisamos de um Girão vivo e pujante, de braços bem abertos e erguidos, quais frondosos ramos de uma majestosa árvore impossivel de abater!